No Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional guarda mais de 200 anos de memória do Brasil

Uma casa de memórias. É assim que a presidente da Biblioteca Nacional, Helena Severo, descreve a instituição de mais de 200 anos. Entre mapas que projetam a demarcação de fronteiras e primeiras edições de clássicos da literatura, seu cofre bicentenário guarda a produção intelectual brasileira e os caminhos que nos levaram à cidadania. Preservar o conhecimento dessa história é prioridade do governo federal. Pelo Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), o Ministério da Cidadania vai encaminhar R$ 21,1 milhões à Biblioteca Nacional.

 

O ministro da Cidadania, Osmar Terra, destaca que os investimentos do governo federal no resgate e manutenção do patrimônio cultural brasileiro fortalecem e qualificam a oferta ao público. “Estamos recuperando a Biblioteca Nacional, que é um símbolo do Rio de Janeiro, do Brasil e da cultura brasileira. São investimentos para melhorar a nossa estrutura cultural, a nossa oferta de serviços na área da Cultura e fazer com que o nosso povo possa desfrutar da arte e da cultura brasileira em um nível de excelência”, afirma.

 

Parte da verba deve ser aplicada na instalação do sistema de combate a incêndio na sede – prédio localizado no centro histórico do Rio de Janeiro, na Cinelândia. O projeto, já aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Corpo de Bombeiros, visa a segurança da edificação, do acervo e dos cerca de 300 funcionários, além dos visitantes.

 

A maior parcela do recurso do FDD, no entanto, será para a recuperação do prédio anexo, na região portuária. Com a reforma, a estrutura poderá armazenar parte do patrimônio da Biblioteca Nacional – estimado em mais de dez milhões de exemplares, entre documentações, cartografia, iconografia e, é claro, toda a sorte de literatura.

 

Acesso à memória

 

Enquanto instituição, um dos objetivos é democratizar o acesso às obras, conforme pontua a presidente. Helena frisa que a equipe tem trabalhado pela divulgação on-line do acervo. A proposta é multiplicar cultura para além dos 13 mil metros quadrados e cinco pavimentos da estrutura. “O povo se identifica como povo, a nação como nação, a partir desse conjunto de signos, de sinais e de símbolos que forma sua memória. Nós somos essa instituição, nós levamos isso. Pelo portal da Biblioteca Nacional, qualquer pessoa, em qualquer lugar do planeta, pode acessar uma grande parte desse nosso acervo”.

 

Raridades

 

Foto: Clara Angeleas/Ministério da Cidadania

Chefe do Departamento de Obras Raras da Biblioteca Nacional, a bibliotecária Ana Virginia Pinheiro cuida dos tesouros da história brasileira. O Departamento de Obras Raras é uma sala-cofre, na qual somente funcionários autorizados podem entrar. “Nós guardamos obras produzidas desde o século XV, produzidas na Europa, no norte do planeta, e que vieram para o Hemisfério Sul e encontraram outro ambiente e outros processos de deterioração. O nosso trabalho de preservação é árduo, contínuo, ininterrupto”, ressalta.

 

Ana Virginia tirou algumas raridades da sala-cofre para mostrar à nossa equipe. Entre elas, a primeira edição de Os Lusíadas, do escritor português Luís Vaz de Camões. “A primeira, primeiríssima edição de Os Lusíadas, o que chamamos de edição príncipe. Ela é considerada muito rara. Publicada em Lisboa, em 1572, é artesanal, toda em papel de trapos. E o exemplar da Biblioteca Nacional está completíssimo. Você está diante de uma edição de quase 500 anos”, explica Ana Virginia.

 

Tesouros da encadernação

 

A chefe do Departamento de Obras Raras também trouxe dois volumes de Dom Quixote de La Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, de tamanho similar às conhecidas edições de bolso. “São alguns tesouros da encadernação, porque a materialidade do livro também é informação. Uma característica dessa edição é que ela não é mais extensa do que almofada de uma mão. É um tipo de publicação, já do século XX. Ela é preciosa, rara, justamente por causa do formato. A gente acredita que era para que os estudantes pudessem carregar o livro na manga do paletó”, relata.

Preciosidades

 

Em princípio, todos os livros publicados no Brasil devem ter uma cópia encaminhada à Biblioteca Nacional. Servidora da fundação há 30 anos, Mônica Alves alega que cada livro que chega à instituição torna-se objeto de valor. Ela elenca algumas preciosidades, que não foram possíveis fotografar.

 

“Nós temos uma coleção de gravuras de Rembrandt, temos o segundo livro impresso no mundo, que é a Bíblia de Gutenberg. Temos livros de horas, que são livros de oração, também livros do século XI, um evangeliário grego escrito à mão, em pergaminho. Enfim, nós guardamos o patrimônio cultural”, aponta.

 

Conservação e restauro

 

As obras mais antigas passam pelo setor de Conservação e Restauro da Biblioteca Nacional. Segundo o coordenador da seção, Jayme Spinelli, os procedimentos nas áreas são diferentes, mas os cuidados sobre eles são os mesmos. “No centro de conservação, a gente analisa e trabalha com materiais que não necessitam diretamente de atividades de restauração, mas de preservação e conservação. Os cuidados são iguais, porque nós trabalhamos com obras raras”, observa.

 

Já no Laboratório de Restauro entram os materiais que necessitam de intervenções e reparos em sua constituição. Pesquisadora e restauradora da Biblioteca Nacional, Isamara Carvalho está trabalhando na recomposição de uma obra do século XVI. Ao narrar as etapas do processo, explica como se dá e qual a finalidade do trabalho.

 

“A restauração é uma tentativa de tentar fazer a obra retornar a um estado supostamente original, ou mais próximo dele. E tentar dar uma condição de manuseio, novamente, a essa obra”. No entanto, há um limite para a restauração. “Não podemos recompor nada que se perdeu, nenhuma informação de texto, porque aí estaríamos fazendo uma falsificação. Nós fazemos a recomposição do suporte”, narra a pesquisadora.

 

A restauração ainda envolve processo de higienização, que consiste em enviar o exemplar ao banho para remover a acidez e outras impurezas. Depois, ela passa pelo processo de reenfibragem e recebe uma polpa moderna de papel com tingimento mais próximo da cor original. Nas fases seguintes a obra recebe nova encolagem, é reforçada com papel japonês e, com o suporte recomposto, volta a ser remontada. A última etapa de restauro é a encadernação.

 

Tecnologia e leitura

 

O caminho seguinte à conservação ou restauração é a digitalização das obras. No quarto pavimento do prédio, três salas de paredes em preto hospedam o Laboratório Digital. É nele que as obras são digitalizadas e, então, colocadas on-line. “Área cartográfica, área iconográfica, obras raras, obras gerais, enfim, todo o acervo da casa passa aqui pelo laboratório”, atenta Otávio Oliveira, que lidera o setor. Ele informa que a soma da passagem do tempo com o manuseio das obras colabora para a sua deterioração.

 

“É um dos melhores laboratórios do País, com certeza. Nós temos aqui sete equipamentos, que chamamos de planetários, e duas ilhas de reprodução. Uma boa parte das obras que estavam em estado mais delicado já foram digitalizadas e já estão disponíveis na Biblioteca Digital”, conta. Aproximadamente dois milhões de obras estão disponíveis no site bndigital.bn.gov.br.

Instituição

 

Helena Severo, presidente da Biblioteca Nacional. Foto: Clara Angeleas/Ministério da Cidadania

A Biblioteca Nacional é considerada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo. Além disso, é a maior biblioteca da América Latina. O núcleo original de seu acervo é a antiga livraria do rei português Dom José, organizada sob a inspiração de Diogo Barbosa Machado, abade de Santo Adrião de Sever, para substituir a Livraria Real, cuja origem remontava às coleções de livros de Dom João I e de seu filho Dom Duarte, e que foi consumida pelo incêndio que se seguiu ao terremoto de Lisboa, novembro de 1755.

 

“A Biblioteca é uma instituição bicentenária. Esse acervo original, ele cresceu de uma maneira extraordinária. Temos o acervo bibliográfico, documental, iconográfico, cartográfico. Então, a Biblioteca Nacional, eu poderia dizer que é a grande instituição de memória nacional.”

Helena Severo